Joana viu aquela pomba esmagada com suas tripas, penas e poucas cores expostas ao mundo, no asfalto da rua de cima. A infeliz da ave nem teve tempo de virar de costas e esconder a cara e o peito, partes tão pessoais. Era tão nojento e verdadeiro que não dava pra não olhar. Era como passar por um acidente na rua, que quanto mais trágico, mais todo mundo para por mais tempo pra contemplar a sorte que é não estar no lugar dos que se ferraram naquele dia. Daí o papai começava a chamar por uma tal de Cacilda, que não se sabia quem era, Joana já tinha perguntado, e ele não respondia: “Cacilda! Vagabundos que não trabalham. Não têm que chegar no trabalho, não, inúteis? Ê, bando de esquerdistas vagais! Cacilda!”.
Os olhos da ave azarada pulavam pra fora, tentando entender se tinham morrido ou se era só mais um pesadelo. Joana sabia bem como era ter os olhos assim no meio da noite. Já tinha acontecido no dia em que sonhou que estava pelada na frente da classe e menstruava pelo chão de madeira, enquanto todos, inclusive o Felipe, riam e apontavam.
As asas da falecida não tinham mais nenhuma utilidade. Estavam cortadas, que nem as vontades de Joana, quando era proibida, por exemplo, de sair na chuva pra dançar e sentir a roupa toda grudando e escorrendo por suas formas cada dia mais evidentes. O bico da ave que havia aceitado tanta migalha até hoje, estava boquiaberto com a novidade.
Morrer saciava.
Que nem a boca do vô José aos domingos, quando tirava soneca depois da feijoada e de uns copos de água benta que fazia ele ficar vermelho e falar enrolado. Ele também parecia morto dormindo. Joana não queria que o avô morresse, mas o tio Carlos queria – ouviu a avó dizendo outro dia, parece que assim tio Carlos raparia tudo. O que era “rapar”, Joana não sabia. Tio Carlos era o homem mais feio que Joana já tinha visto. Mas ao contar esse segredo pra Clarinha, sua melhor amiga, Clarinha disse que achava que todo mundo tem um tio feio que só pensa em rapar tudo. Clarinha era sempre muito sábia, mesmo sem saber de tudo.
Acabou para a pomba.
Para Joana também acabaria. Para o avô também, e para a mãe também. Para a Clarinha e para o Felipe, com quem Joana casaria, também. Para o pai também. E até para o tio Carlos, que parecia não saber. Para a sua árvore preferida, cheia de limões pequenos e bondosos, e para a tia Teca, que não entendia ser possível sobreviver sem um homem ao lado, também. Para o Seu João da pipoca, Valdemira da limpeza, para o cachorro pulguento e cheio de sarna da praia da areia boa, também. Para a gata Caramelo e para as mulheres peladas que o irmão via na televisão à noite, acabaria. Para o primo débil que não largava o vídeo game, e só sabia falar disso, também acabaria. Acabaria para a professora Georgina e para o garçom magrelo da pizzaria, que sempre convencia Joana a comer também os legumes, e não só o queijo da pizza. Acabaria até para o mar e para o céu e para o sorveteiro Bebeto. Para Gigi, a sua prima mais linda do mundo que dava raiva e vontade mesmo que ela morresse, assim paravam um pouco de elogiá-la, também. E acabaria para a chuva, para as tardes de chuva, para as manhãs ardidas antes das tardes de chuva. Para o asfalto que exalava um cheiro de chuva antes mesmo da chuva.
Daria saudades do ódio da chuva naqueles dias de verão. Joana entendia daquele ódio. Era o ódio daqueles que querem expor suas razões e não são ouvidos pois não têm idade suficiente – de repente, eles ficam tão bravos de serem impedidos, que não se seguram e descem destruindo tudo o que veem pela frente.
Chover era vingança, e um dia Joana choveria.
Acabaria para aquele porteiro novo que procurava algo nas suas pernas de criança, algo que ela não sabia o que era, e fazia ela se envergonhar. Acabaria para a velha do terceiro andar que apertava a sua bochecha forte, de tanta inveja por ser velha e baforenta, enquanto Joana era nova e escovava os dentes. Acabaria para o elevador, seria o fim do apartamento onde morava, e do peixe betta que ganhou de lembrancinha numa festa, e que matou todos os outros peixes do aquário, achando ser possível, assim, evitar a própria morte. Ele que se enganava. Acabaria para ele também.
– Ué, Joana, cadê o pão?
– Não trouxe ainda. Vim buscar uma capa antes de ir à padaria.
– Capa? Mas já está chovendo, filha?
– Não. Mas quero esconder as minhas partes pessoais.
cris 99 araujo gmail .com
Poxa vida, conto muito bem escrito e articulado. Engraçado até. O final é muito bom mana, gostei de Joana.
Obrigada, maninha ❤️ Você é nova aqui, né?
Obrigada, mesmo.
Beijão
Acabei achando seu blog por um acaso. Gostei bastante da sua escrita e já a salvei nos meus favoritos.
Sucesso mana!