O meu carnaval

Tudo começa com a fantasia que me coça.
Só de olhar aqueles frufrus, babados e brilhos me dá urticária, e toda a vez que me fantasio só consigo torcer pra não desenvolver candidíase purpurinada.
Daí ok, respiro fundo.
Pô, faz um esforço, você é jovem, olha aí o pessoal como tá animado pra ir pro bloco, se anima também, sua mala metidinha a diferentona.
Calma, quem é aquele? O Raul? Mas não é possível, quem chamou esse cara pra ir com a gente?
Oi, Raul! Tudo ótimo, e você? Não, isso é uma orelha de coelha. Pareço o quê? Ah, que engraçado, e você tá fantasiado de quê?
Gasparzinho é a sua avó, Teletubbie alucinado. E de Zorro você não tem nem o branco do olho, garoto, me respeita.
Daí vem a hora do supermercado. Eu tentando, delicadamente, introduzir o assunto de que não acho justo dividir a conta toda, pois eu não bebo álcool em multidão (e em quase nenhuma ocasião): gente, vou beber água, alguém comprou água? E chocolate? Para a hipoglicemia, ué. Não? Tem salgadinho pra pressão baixa? Pode ser uma Brahma Zero, então? Mas não tem nada pra mim, e a minha parte fica em R$84,65?
Bom. Tudo bem. É para o bem de manter amizades, e não morrer sozinha na sarjeta da rua dos isolados.
Paramos o carro (o meu, porque eu sou a única com condições de dirigir depois do bloco de carnaval), e enquanto todos começam a descer animadíssimos a rua perfumada de pinga com urina, eu vou me afastando do meu Fox preto com o coração partido, torcendo para que ele não seja exposto à nenhum trauma, para que nenhum casal transe em cima dele sem camisinha, ou para que ele, simplesmente, não suma de onde está.
Entro no bloco como uma adolescente que chega de madrugada em casa, analisando cada movimento meu com muito cuidado e tensão, apavorada só de pensar em tomar um banho de cerveja, vômito e confetes em seguida – para fixá-las bem no meu corpo.
Começo a distribuir “licença” e “desculpa” pra passar, esfregando a minha pele antes lisinha e cheirosa num paredão humano de suor fosforescente. Demoro alguns minutos pra entender que o jeito de andar é distribuindo cotovelada, senão eu vou ficar pra trás do meu grupo de amigos naquela merda de bloquinho – mas, gente, que ideia fraca que eu fui ter.
Finalmente, meus amigos decidem parar de me torturar, e encontram um lugar para se instalarem – pelo resto da tarde, da noite e da eternidade. A este ponto, já estão todos drogados: eles nos ilícitos, eu nos receitados. Ao nosso lado tem uma roda de jovens que bebe um galão de gasolina com colorante azul; do outro lado tem um casal que disputa quem consegue morder a amídala do outro primeiro, ao mesmo tempo em que ensaiam posições de ashtanga vinyasa yoga sem roupa; e atrás de mim um grupo ri como se não existisse a morte de tanto chupar uma camiseta embebida de lança-perfume.
Começo a ver estrelas, e as pessoas passam a ter chifres e 5 narinas.
Percebo que eu, definitivamente, não sei paquerar em carnaval, porque durante todo o tempo em que estou no bloquinho não olho para homens, apenas para mulheres, suas maquiagens perfeitamente reluzentes peroladas simétricas brilhantes e fascinantes, e seus corpos tão lindos, torneados, bronzeados – enquanto eu me sinto gorda, flácida, branca, derretida e assada. Até suas celulites são muito mais lindas que as minhas. E os sorrisos? Mas como conseguem, estão rindo do quê, o que aqui é engraçado, elas não passam mal? A pressão delas se mantém como, a taxa de açúcar no sangue não baixa? Elas não têm medo de colocarem MD nas suas bebidas? E Boa Noite Cinderela? Elas não tremem, não veem pontos pretos pré-desmaio, meu Deus, queria ter a barriga daquela garota, olha como aquela outra rebola como se não houvesse possibilidade de hospital depois daqui, de onde elas vêm? Do que se alimentam?
Elas suam de pular, e eu de hipoglicemia, pressão baixa e pânico, então começo a procurar por algum vendedor ambulante que tenha com ele algo semelhante a um shot de soro e misericórdia pra eu comprar. Não encontro nada além de cerveja “uma é cem, duas cento e noventa e nove”, então chego para um amigo, e digo: não estou bem.
Este amigo, afogado na compaixão, diz que eu nunca estou bem e que é pra eu relaxar: joga a mão pro alto e curte o som, abre a boca assim, ó, e respira essa fumaça boa, você precisa enfrentar esses seus medos, vai acabar com a tarde de todo mundo por causa deles. Enfrenta logo, vai, vou te ajudar.
Enquanto este amigo coloca à força meus braços pra cima e os balança como se eu achasse carnaval algo aceitável para a minha saúde, eu não ouço o som, só consigo sentir marteladas no meu estômago, minhas costelas querendo fazer aula de step dentro de mim, e minhas pernas começando o processo de adormecimento, bem característico de quando chegaram ao seu limite de horror.
Quanto à fumaça, nunca engoli tanto CO2 e outros gases e substâncias que não quero saber quais são, e começo a procurar, desesperadamente, uma fantasia do bem para eu desmaiar em cima. Acho que naquela Branca de Neve, pondero. Mas também considero o homem vestido de bombeiro, me parece útil. Mudo de ideia pois tenho medo de homens em carnaval, e decido cair em cima da ursinha Pooh.
Enquanto um infeliz tenta me beijar sem saber o meu nome e se eu tenho ou não sapinho na boca, desvio dele ensaiando o discurso que direi ao médico: não, doutor. Eu não usei nada, eu respirei. Eu inalei exibicionismo alheio de gente que consegue ser feliz, e esfrega isso na minha cara pintada de derrota. É isso o que tem no meu sangue agora, dá pra tirar?
Daí olho para o lado, e vejo que o cara com quem eu estava saindo, e que inclusive me chamou para um jantar romântico no dia anterior dizendo que me amava, agora brinca do mesmo jogo das amídalas com uma colega de trabalho dele, sem se importar que eu estou ao lado vendo tudo. O Raul tira uma selfie mostrando os dois se beijando atrás dele, e posta com a hashtag #foliões.
Observo o bloquinho com apenas um olho (uma das orelhas da minha fantasia perde a força e morre de tanto sofrer), e não consigo compreender se as pessoas estão naquela situação pra pagar promessa, serem perdoadas por algum pecado, ou, como eu, têm apenas medo da solidão: elas estão mesmo se divertindo? Mas, céus, como?
Para me distrair, tento puxar assunto com uma garota que curte todas as minhas fotos nas redes sociais, e escreve pública e insistentemente que está morrendo de saudades de mim, mas ela mal me responde, pois está muito ocupada atualizando o seu Stories no Instagram. E também porque dizem que ela desaprendeu a falar, sabe apenas digitar – isso não sei, são boatos.
As pessoas que eu julgava serem meus amigos não respondem mais por suas atitudes e mandam eu parar de ser chatinha, o cara com quem eu saía agora se atraca em algo parecido com um Pikachu, e o Raul vomita em cima de uma fada Sininho.
Decido, corajosa (e sem muita saída), ir embora sozinha, já que todos estão felizes demais para me ajudar, e pelo que parece ninguém vai sair de lá até o dia do ano novo – quando vão, novamente, esfregar na minha cara como são plenos e estilosos, e como têm roupas tão brancas tão maravilhosas e tão exclusivas que eu jamais terei – isso sem contar os destinos para onde viajam, porque se não for pra custar o valor anual do meu aluguel, meu bem, eles nem saem de casa.
Vou cotovelando o bloco inteiro pedindo a todos os santos que me ajudem a sair de lá viva, e quando coloco o primeiro pé pra fora daquele circo de horrores, olho para trás e visualizo o que eu (agora sim, não preciso de mais um ano de carnaval pra constatar), tenho certeza de que não condiz com minha personalidade e meus limites: nunca mais eu piso nessa barbaridade, prometo.
Entro num boteco em que eu jamais entraria (a hipoglicemia e a pressão baixa sempre fazem você tomar atitudes lunáticas), compro uma água, um Doritos e um chocolate, e subo solitária, caolha e aliviada, a rua urinada e alagada de álcool, respirando com força para compensar a meia-hora de tudo – menos oxigênio – que eu inalei.
Desfruto da minha liberdade até finalmente chegar em casa, e deitada no sofá depois de 40 banhos normais e 60 de álcool-gel, começar a rolar infinitamente a tela do meu celular, sendo metralhada por todas as redes sociais, onde fotos coloridas brilhantes eufóricas e pertencentes ao mundo normal me lembram como eu sou solitária e totalmente sem graça de não conseguir aproveitar a festa.
Não é raiva. Não é ódio. Não é aversão.
O que eu tenho é apenas uma inveja brutal da saúde dessa gente que consegue aproveitar o carnaval sem temer a morte salpicada de purpurina – concluo, quando começo a sentir a candidíase querendo dar o ar da graça.

3 comentários

  1. Drica, esta leitura foi um deleite! Li sorrindo… quase sentindo o que vc escreveu. E se te consola, também não passo nem perto, e não é de hoje … grande beijo! Texto maravilhoso, parabéns, linda!!!!

  2. Drica você está cada dia melhor em seus escritos. Seu texto me remeteu ao ano de 2015 quando caí de paraquedas na cidade do Rio de Janeiro em pleno carnaval de rua. Levada pela massa de carne, suor e cerveja, pensava com meus botões: O que estou fazendo aqui? Onde estava com a cabeça ao vir passar meu feriado nesse inferno? Aff! Adorei!!! Seu texto. Deixa eu esclarecer bem, rs. Beijo

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