o que acontece
a gente não apaga
está lá
é a parte mais minha de mim
às vezes me chama
me olha de frente sem cerimônia
me oferece um café
pede cinco minutos
esse vento é de chuva, senta
acende um cigarro, tem vinho bom
é pra testar meu poder
de não me importar
em ser e estar
às vezes se camufla nas minhas distrações
é só mais um poro
um pedaço, um pouco
não demais
uma bic jogada em cima da mesa
inofensiva
mas esperando, estrategicamente,
ser útil: ela sabe que um dia será
e quando quer utilidade, machuca
me tira do rumo onde eu sei
como pisar
é pedra, me atira
alfineta meu caminho, me lembra
quem eu sou
que estou
quem eu fui
que ainda vou
areia deserta
pela qual andei um dia
esperando por deus e todos os santos
poder voar
quando vai embora
tenho asas, é possível
presença calma e paciente
de um amuleto
já tão sofrido
mas que agora
é sorte permanente
grades que me fazem lutar
pra escrever
sobre terras, sobre águas, sobre ares
sobre os sóis
que nunca me queimaram
memória que quer esquecer
sem deixar de me cuidar
dizendo, maternalmente,
que isso é a vida
e que quando eu for
mãe
eu ainda vou entender
ô, se vou
rugas que ainda são
plásticas, articuladas, férteis
um dia serão mais
hoje são luta
na tentativa de organizar
o que eu devo e o que eu posso
me jogo, leve,
em cima de um sonho
que ainda não há
quero ver se ele cai
ou me segura
quero ver se me cala
ou me permite
quero ver se me prende
ou me deixa,
como amor de verdade,
escrever uma história
que nem poesia
pudesse inventar
se não for pra ser assim
que nem comece
essa paisagem
que nem exista
e você
que não me insista
porque o que acontece
a gente não apaga