feijões dentro de um pote branco

adoraria ser mais gente
e menos poeta

começaria o dia acordando
e não me deitando
sobre assuntos que nem
para serem assuntos servem
mexeria ovos sem calcular
verdades de galinhas

caminharia na areia
como os que caminham, apenas
e não refletiria sobre quantos grãos
ainda terei que engolir
se não fosse o que eu disse, o que eu fiz
como eu disse, como eu fiz
para quem eu disse, para que fiz

(mas por que teria dito e feito?)

tomaria um café
bem preto e bem forte
que não passaria de um café
bem preto e bem forte
e nele colocaria açúcar se eu quisesse
caso isso não tivesse consequências
de amplitude colossal

talvez eu tivesse uma dor de cabeça
como as que as gentes têm
mas tudo bem
isso não passaria de uma dor de cabeça
a humanidade não teria nada a ver
com a minha cabeça

ser gente é ter problemas que se resolvem
ser poeta é inventar problemas
sem solução

ou então, que lindo seria,
ver uma flor sem questioná-la
sobre quantos segundos faltam
para a morte me lamber da cabeça aos pés
que nem água de cachoeira, que chega forte
como mulher, e afoga
como o primeiro encontro

coitada da flor,
que azar teve ela de tombar com um poeta

porque poeta que é poeta
é insuportável
questiona mas não quer resposta
pergunta com a certeza
de que ninguém vai responder
aos seus questionamentos idiotas

ô, individuozinho mais indeglutível

adoraria ser mais gente
e menos poeta

ser gente é amar alguém
ser poeta é inventar alguém
para não amar
na tentativa de não pensar em quem ele ama
porque o amor para o poeta
é só uma estratégia para mais uma poesia
e quando quem ele ama, ama o poeta de volta
pode até ser amor, mas
poesia não é

e as gentices que as gentes fazem:
elas tragam um bom cigarro
compram cenouras e detergentes
matam baratas, se preciso
varrem um pouco a calçada, quando dá
bebem uma cachaça, quando deu
infringem umas regras, sempre dá
viram noites e saciam desejos, nunca meus
e até alugam uma bicicleta
para rolarem, tão engentalhados,
sobre meus medos paralíticos

e nada disso os faz questionar
nem por um segundo
sobre o que faríamos
se fôssemos feijões dentro de um pote branco
e uma mão gigante descesse do céu
enfiasse seus dedos em nós
escolhendo aqueles que são meio
poetas
tacando-nos, depois, bem longe
para onde ninguém iria

ou, ainda mais catastrófico,
para a próxima
poesia

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