Demitida.
Primeira vez.
Como toda a primeira vez, não tem descrição.
Tem que viver pra saber.
Dá pra descrever o primeiro porre? A primeira decepção? O primeiro beijo na boca? A primeira transa? O primeiro cigarro? O primeiro amor? A primeira crise de pânico? O primeiro Rivotril?
Tem que beber, sofrer, beijar, transar, fumar, amar, desesperar, aliviar deliciosamente todos os músculos, e, como mágica, achar que existir não é castigo.
Não dá pra explicar.
Estou num Starbucks qualquer, mas não lembro como cheguei até aqui. Vim andando. As pernas dormentes, a cabeça tão pesada como se um avião tivesse pousado em cima do meu couro cabeludo, e quisesse me empurrar pra baixo do cimento, das catacumbas, das placas tectônicas. As mãos sem jeito, uma segurando a bolsa, a outra dentro do bolso do casaco peludo.
Muito frio.
Pessoas frias.
Tô na merda.
Désolée.
Talvez eu quisesse ver gente, comer um negócio barato cujo gosto e calorias eu já conhecesse, tomar um chai latte, usufruir gratuitamente de um wifi, ter uma tomada por perto.
Gosto de ter tomada por perto. Chato é quando a gente chega no lugar, e tem tanta gente que não sobra nem mesa, nem cadeira, nem tomada.
Désolée.
Mas, assim, depois de tudo? E agora, eu faço o quê?
Desconhecidos se aproximam, são tão desajeitados para oferecer ajuda… Tá na cara deles a dificuldade.
É cultural, não tem jeito.
Madame, você vai superar. Madame, é grave? Faço que sim e que não com a cabeça, não dá pra falar, só passando por isso pra saber.
Lágrimas escorrem sem nenhum esforço, como as águas dançantes do Sena. A pele esquenta, o peito se encolhe num espaço minúsculo entre o que eu desejo e o que eu não controlo.
O que mais eu poderia ter feito?
Désolée.
Eu não tinha o perfil. Pouco agressiva, pouco dinâmica, cuidadosa num nível pouco lucrativo.
Désolée.
Você vai achar um jeito, vai encontrar outro trabalho, vai dar certo, tá? Quem sabe no futuro você não volta? Assina aqui, ó. Seu nome. O seu nome, Adriana. Coloca a data. Tanto faz, pode ser em número, mesmo. Não, estamos em novembro de 2017. Agora? Agora, bom, agora é isso, ué. Quer terminar o dia de trabalho ou ir pra casa? Então pega esse produto, leva com você, é seu. Pra usar oras, é ótimo, espalha nas pernas depois do banho, aproveita que está frio, faço questão. Bom final de dia pra você. Você é ótima, viu?
Quis vomitar, mas lembrei que não vomito desde 1994.
Quis comer, mas quando peguei o cookie do Starbucks na mão, pensei que desempregada e gorda, não. Ou um, ou outro.
Ofereci o doce para uma criança, fiquei só com o chai.
Quis ligar para algum ex, quis dormir na casa do Papai Noel, quis viajar pra Plutão, quis que a caixa do Starbucks me ninasse cantando Sandy & Júnior, quis ser um rato.
Sento em uma mesa e viro minha bolsa de cabeça para baixo, pois não tenho condições de procurar por nada. Cai batom, carteira, elástico de cabelo, sachês de sal e açúcar, uma garrafa de água inacabada, um folder com o endereço de um cabeleireiro que promete milagre a troco do rim, nécessaire de remédios, canetas, algodões, e, finalmente, o meu caderno.
Pego o meu chai latte com uma mão – no qual está escrito o meu nome na sua versão masculina (e, ainda assim, errada, deixando tudo um pouco mais lamentável), e com a outra seguro um lenço de papel em estado de pós-guerra. Estou inchada entupida corcunda, não passa ar pelas narinas, respiro pela boca.
Uma moça chega perto de mim e ajoelha na frente da minha mesa. Presto atenção na sua burca – rendada, de flores. Ela fala e eu não ouço. Queria pegar uma daquelas flores. Queria cheirar aquelas flores. Queria ser um bambi e pular entre aquelas flores, celebrando o fato de que não preciso pagar aluguel, pois sou um bambi.
Ela tem os olhos escuros, covinhas que eu sempre desejei, e a sua boca carnuda pode fechar, pois ela respira pelo nariz. Só não consigo distinguir a cor de fundo daquela burca: é azul-marinho ou preta?
Madame? Ça va?
É trabalho – digo logo pra ela não ter que perguntar o motivo e nenhuma outra questão, e para eu também não precisar articular mais nada com minha boca semiaberta: perdi o trabalho.
Ah, mas é só o trabalho?
Penso nos últimos 8 meses e soluço.
O lenço não está mais dando conta, escorre tudo o que é possível de todos os orifícios da minha cara.
Você vai achar outro, ma chérie. Vai na Zara, vai na H&M, imagina, uma moça assim encontra logo. É natal, todo mundo precisa de gente.
Puxo o ar pela boca e não me mexo, não demonstro nada. Minhas bochechas formigam e meus olhos já conseguem enxergá-las de tão inchadas que estão.
Acho que é azul-marinho.
Não deixo você ficar assim por trabalho, ela dá um sorriso.
Tento sorrir de volta, mas minha boca não me respeita, e deixa-se morder pelos meus dentes. Meus lábios resolvem se esconder do mundo, e vão, aos poucos, se enrolando em direção à minha gengiva e para cima dos meus dentes, que agora ficam completamente aparentes, como os dentes de um coelho. Não satisfeita, inclino meu corpo, sem poder de decisão, para perto dela como se fosse beijá-la (ou roê-la).
Não controlo meus movimentos, e isso me constrange um pouco.
Ela contrai as sobrancelhas, como quem tenta solucionar uma questão, e seus olhos percorrem a mesa. Eu nem me importo com o fato de que todas as minhas coisas estão jogadas e expostas sem nenhuma vergonha. Ela olha o batom, nécessaire, folder… o olhar para sobre o caderno aberto.
Você tá escrevendo o quê?
Empurro o caderno pra perto dela. Ela que leia, não consigo falar.
Interessante, ela diz. Que língua é?
Rio de Janeiro, respondo. Pardon, portugais.
Fico preocupada com meu estado psicológico, e cogito um calmante.
Isso, escreve. Chora, e depois sai daqui ciente de que isso vai passar, tá? Tudo passa, ma chérie, você é forte.
Aham. D’accord. Merci.
Désolée.
É outono, e às 17h já é noite. Saio do Starbucks sem saber o que jantar, me perguntando se jantar é obrigatório.
Venta muito, as folhas são amarelas, cabelos voam, famílias, amigos, crianças, decoração de fim de ano.
Vou ao supermercado que conheço, onde sou amiga do segurança que sempre deixa eu entrar, ainda que eu chegue na hora de fechar as portas. Ele pisca pra mim, eu finjo que sorrio, torcendo pra minha boca não me envergonhar de novo.
Escolho uma salada pronta, pego uma banana pra comer no trem. Não tenho fome, mas preciso me alimentar.
Pago e saio.
Lágrimas continuam a cair, pernas ainda dormem, a língua gruda no céu da boca. Não há saliva, e isso me deixa um pouco incomodada. Preocupada também.
Désolée.
Passo por uma vitrine decorada para o natal. Paro na frente embriagada de tanta realidade que fui obrigada a engolir durante o dia, e não me movo, como uma criança hipnotizada. Tenho frio, mas as minhas pernas estão paralisadas.
Madame? Madame, s’il vous plaît?
Um mendigo me chama a atenção. Ele está sentado ao lado dos meus pés, e estende o braço.
Não respondo. Fico olhando pra ele, ainda anestesiada, formigando por completo, respirando pela boca.
Madame? Tenho fome.
Normalmente, eu diria “Désolée”.
Hoje não.
Hoje eu também estico o braço, dou o meu jantar pra ele, e caminho em direção ao metrô.
Pode até ser difícil. Muito difícil. Mas mais difícil vai ser me tirarem daqui, agora que eu decidi ficar.
Désolée.
Medos e anseios estou bem no meio disso! Gostei do seu “jeito de escrever”.
Foi um prazer conversar com vc hj no café.
Drica você é muito linda por dentro e por fora. Adoro quando divides os teus medos e os teus anseios. Muitas vezes acho graça e em outras me aflijo pelas circunstâncias. Mas acredite esta é a sua melhor fase. Aproveite tudo e viva intensamente. Bjos. Continuo te acompanhando e vibrando a cada texto.
Ai, que amor!!!
Obrigada, Silvia, recados como o seu me fazem um bem, se você soubesse…
Lindinha você é mil!!
2018,vai ser diferente, coragem guerreira!!!
😍😘
❤ ❤ ❤ amo
ÓIA! Tinha até “placas tectônicas”….enquanto elas se movem e se chocam, se vc estiver no front (e está), inicialmente será abalada sismicamente, mas com o tempo se soerguerá numa enorme cordilheira! Este é seu destino! Orgulho!
Professor, você é muito querido.
Muito obrigada.
Que recado lindo! Fiquei tão feliz!!!
Um beijo grande, com muito carinho 🙂
Linda você!!! 💋
❤